quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

TEXTO DE MARCOS CAETANO DIGNO DE SER LIDO/VALE MUITO A PENA!!

São estranhos, os corredores. Travei contato com eles numa ensolarada manhã de quarta-feira, quando, como todo sujeito perto de fazer quarenta anos, tentava praticar algum exercício em busca do tempo perdido. Meu projeto de Dorian Gray não ia além de umas pachorrentas caminhadas no Ibirapuera, algo que eu realizava com regularidade surpreendente. Tão surpreendente que, quando dei por mim, estava até correndo um pouquinho. Um pouquinho mesmo: coisa de um ou dois quilômetros, naquele trote triste de bassê com cinomose. Pois lá estava eu, empolgado com minhas carreiras, quando quase fui atropelado por um célere grupo de pessoas em uniformes rubro-negros – algo que, como tricolor de truz, muito me desagradou. Nos uniformes estava escrito: Run for Life. Quando vi aqueles apressadinhos passarem por mim, decidi acompanhá-los. Mais do que isso: quis ultrapassá-los. Afinal de contas, eu estava na flor dos meus 38 anos, caminhando todo dia – às vezes até correndo! – e eles sequer tinham pinta de atletas. Muitos já eram avôs. Havia até uma velhinha japonesa de 72 anos! Ora, eu tinha que deixá-los para trás. Ao menos a velhinha! Apertei o botão do turbo e mudei minha velocidade de bassê com cinomose para pastor alemão manco. Parti para o ataque, todo entusiasmado. Entretanto, para meu desespero, a velhinha desapareceu no horizonte. Ela cruzou a linha de chegada imaginária – que, para os corredores do Ibirapuera, fica numa tal de ‘praça do porquinho’ – uns trezentos metros na minha frente. Detalhe: Dona Mitiko Nakatani – era esse o seu nome – terminava um treino de 3 km, enquanto eu corri apenas os últimos 800 metros. Pouco depois de recuperar o fôlego – pouco depois é modo de dizer, pois levei uns cinco minutos para conseguir voltar a falar – me dirigi a um dos integrantes do grupo e, arfante como um centroavante obeso, perguntei quem era o treinador da velhinha. O camarada me contou que todos ali eram treinados pelo Wanderlei de Oliveira, diretor do Departamento de Corridas de Rua da Federação Paulista de Atletismo, técnico especializado em corridas de longa distância e pioneiro na preparação de grupos para a Maratona de Nova York – algo que ele fazia desde 1982, quando ajudou a fundar a Corpore, a principal associação de corredores do país. Ele ainda me disse que há mais de 13 anos o tal de Wanderlei não passava um dia sem correr, e que já correu até em pista de aeroporto para não perder treino. Falou ainda que, apesar da cara de 28, o técnico tinha 43 anos. Eu disse que nada daquilo me interessava. Só queria saber uma coisa: era ele que treinava a velhinha? Era. A primeira coisa que ouvi do Wanderlei foi: ‘Carioca? Jornalista? Pode desistir. Você jamais terá disciplina para treinar’. Animador, não é mesmo? Mas aquilo mexeu com os meus brios. E foi quando, num momento solene, este escriba cerrou os punhos, olhou para os céus e, como um personagem canastrão de ‘… E o Vento Levou’, jurou correr a Maratona de Nova York em 2004. Em poucos dias, mesmo detestando o uniforme rubro-negro, comecei a treinar na Run for Life. Mas antes precisei fazer uma bateria de exames que comprovou que, para um sexagenário, até que eu estava mais ou menos. O problema é que eu não era um sexagenário! Mas, se a velhinha podia, eu também podia. O que ainda não haviam me contado ainda é que a vovó era campeã internacional na categoria dela – e que começou a correr depois de ter estado muito doente, com mais de sessenta anos de idade. Passei a conviver com eles nos treinamentos e provas. Nunca imaginei que esses sujeitos estranhos fossem tantos. As competições reúnem facilmente oito, dez mil deles. Isso sem falar na São Silvestre e nas principais maratonas internacionais, que contabilizam participantes na casa das dezenas de milhares. Suas conversas são esquisitas. ‘Você é pronador ou supinador?’ – me perguntou um deles, certa vez. Já ia gritar com o cara que nem um, nem outro, que eu sou é espada, quando alguém esclareceu que ele queria apenas saber se meus pés dobram para dentro ou para fora quando corro. Ah, bom… Numa outra oportunidade, capturei o seguinte fragmento de diálogo assim: ‘Você não pode casar com um cara que sequer sabe o seu tempo nos 12 km’. São estranhos, os corredores. Eles acordam às 5h30 para treinar. Dormem muito cedo e dormem muito bem. E têm sonhos. Como todo mundo, eles sonham com Londres, Paris, Nova York e Chicago. Mas não para comer um fish & chips no Picadilly ou apreciar o entardecer nos Champs-Elysées. Eles querem cruzar os Champs-Elysées suados e extenuados, depois de correr 40 km. Aquelas lindas pontes de Nova York, dos filmes do Woody Allen, eles não querem admirar do Battery Park. Eles querem é atravessá-las na mais desembestada carreira. Sua idéia de turismo está muito mais próxima do circuito internacional de maratonas que das estrelas do Guia Michelin. São estranhos, os corredores. Entopem-se de massas e carboidratos, mas estão sempre esbeltos. Exibem os pés castigados como verdadeiros troféus. Têm orgulho das bolhas e cicatrizes. Fazem questão de exibi-las por aí como fazem os soldados veteranos. A distância é uma guerra que eles apreciam vencer – e vencem todos os dias. São solidários. Não basta acompanhar a própria performance – eles gostam de conferir o desenvolvimento dos demais. Possuem a contagiante certeza de que viverão mais e melhor. Uma certeza justificada, aliás, o que faz com que sua companhia seja extremamente agradável. Começam a correr pelos motivos mais inacreditáveis. Como Ana Luiza dos Anjos, uma ex-menor de rua que decidiu começar depois de ver o filme ‘Carruagens de Fogo’. Vivia de pequenos roubos, cheirava cola, benzina, o que passasse na sua frente. Queria correr para fugir da polícia. Os amigos das ruas roubaram para ela o primeiro par de tênis, as primeiras roupas de corrida – e até o dinheiro da inscrição para a São Silvestre. Aprendeu a correr com o Wanderlei, mas não usou os novos poderes para fugir da polícia. Hoje ela é uma das grandes campeãs de sua categoria. Tivesse começado a treinar mais cedo e poderia integrar a elite do esporte mundial. Não importa. O maior de todos os troféus ela já conquistou: nunca mais usou drogas, jamais voltou a roubar, tem um lugar para morar e hoje é uma cidadã com todas as letras. Quando comecei, achei que a profecia do treinador sobre jornalistas e cariocas ia se cumprir. Mas, graças a ele, em apenas dois meses passei do sofá para a primeira meia maratona. O sedentário que não agüentava correr mil metros hoje corre 21 km com muito mais prazer do que sofrimento. A Maratona de Nova York é um sonho cada dia mais próximo. São estranhos, os corredores. Mas hoje eu posso dizer que sinto enorme orgulho de ser um deles. Marcos Caetano é carioca, tem 38 anos, é comentarista da ESPN Brasil e colunista de esportes dos jornais O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil e Pasquim. Treina com a Run for Life desde fevereiro de 2003. FONTE: http://www.e-corredor.com.br/blog/?p=201

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